domingo, 5 de julho de 2009

O DIA DAS MÃES - COSTA KOTZIAS

O dia amanhece com a neblina cobrindo a cidade. A temperatura não passava de 2 graus.
Na casinha de madeira, ali no coração da Vila Hauer, ela acordou, tomou seu banho, arrumou-se, fez a oração de frente para a Virgem Maria e saiu do quarto. O silêncio aumentava o frio que vinha lá de fora. Na cozinha, colocou água na chaleira, ligou o rádio, preparou seu café, igualzinho há 68 anos, da mesma maneira.
Café preto, forte, pãozinho com margarina, um colher de mel, uma bolacha com geléia e um gole de água para tomar os 3 remédios diários, recomendados pelo médico do postinho que a atendia de vez em quando.
Não teve coragem de abrir a janela da cozinha para jogar migalhas aos pássaros, mas ao ligar o radinho da cozinha, sentou-se na cadeira, acendeu seu cigarrinho e ficou ouvindo a Revista Matinal. A cada notícia de morte por arma de fogo ela se benzia e pedia a Deus que protegesse seus filhos e netos.
Vai até a salinha, arruma o sofá, abre a porta da frente e apanha a Gazeta do Povo, já jogada no jardim ainda de madrugada por algum entregador herói, ou necessitado daquele emprego.
Volta, senta, abre o jornal e começa a leitura, na companhia dos óculos antigos, mas eficazes.
O telefone toca. Ela atende e abre um enorme sorriso, pois é filho ligando logo cedo, lá de Maringá, onde foi trabalhar e acabou casando e tendo dois filhos, seus netos preferidos, por serem os mais antigos.
Ouve as novidades do filho, pergunta se eles vêm para o dia das mães e entristece, pois o filho diz que a esposa quer passar com a mãe dela, mas no outro domingo, viriam. Acostumada a receber notícias que machucam, ela retorna para o sofá e recomeça a ler o jornal. Mas a concentração não acompanha, pois a dor da ausência do filho é maior que a vontade de ler.
Toca novamente o telefone, ela levanta e pensa: “ele mudou de idéia e vai dizer que vem”.
Atende. É a filha, querida Luisa, que mora em Ribeirão Preto, para onde foi fazer pós-graduação e casou com um argentino que também era aluno.
Ouve as novidades da filha, diz que está bem, não fala nada do filho e faz a mesma pergunta: “você vem para o dia das mães?” A filha meio sem jeito, meio entristecida diz que não poderia, pois o Nando estava esperando a mãe dele que viria de Buenos Aires e elas não se conheciam. Mas no outro domingo, sem falta, viriam para dar um abraço nela.
Ela desejou boa sorte ao primeiro encontro e desligou o telefone.
De volta ao sofá, uma sensação de vazio dominou aquela senhora, tão forte antigamente, mas tão fragilizada naqueles últimos dias.
A saudade do marido, falecido 10 anos antes, a ausência dos filhos, crescidos e cuidando de suas vidas, a morte do cãozinho de estimação, a mudança da vizinha de 35 anos, a falta de amizades que se perderam pela trilha da vida.
Em silêncio, ela rezou e pediu a Deus que lhe desse forças, pois a fraqueza tomava uma parte do seu coração. Ali ela estava descobrindo que a alma dói.
Cochilou sentadinha no sofá e somente despertou com o toque do telefone novamente.
Animada, atendeu e viu que era uma voz feminina, meio infantil, procurando pela Dona Salete. Ela diz que ali não morava nenhuma Salete e que era engano.
Desliga, vai para a cozinha e começa a preparar o almocinho solitário, igual ao de tantos anos, da mesma forma.
Almoça sozinha na mesa da copinha, toma sua água e mais dois remédios que o médico do postinho receitara, lava a louça, arruma a cozinha e ainda coloca um vaso com flores no centro da mesa, como fazia há mais de 40 anos.
Arruma-se, apanha sua bolsa e resolve caminhar pelo bairro, tomar o ligeirinho e ir até o centro. Ocupar a cabeça era uma saída muito boa para não deixar a tristeza entrar.
Ainda no terminal, encontra com Seu Jorge, o homem do açougue, conversa um pouco, comentam o frio, o noticiário da Revista matinal, a violência que assola Curitiba nos dias de hoje.
O ônibus chega, ela embarca e vai para o centro.
Final de dia, retorna, caminha, entra em casa e guarda algumas comprinhas feitas na Casa China com o dinheiro da aposentadoria e a ajuda que o filho enviava todo o dia trinta de cada mês.
Vai para a cozinha, faz um chá, se agasalha e senta no sofá companheiro de tantas jornadas para ver a novela das seis, das sete, das oito e depois ir dormir.
Passa a semana, a angústia aumenta, fala com os filhos dia sim, dia não, prepara-se para o domingo, dia das mães, que seria passado apenas com ela e suas lembranças.
O domingo chega, amanhece, ela acorda com uma aflição muito grande, uma lágrima cai do olho esquerdo, outra cai em seguida do olho direito, ela perde a vontade de levantar e fica na cama, recostada na cabeceira entalhada pelo cunhado, marceneiro de mão cheia no passado.
Reza, liga o radinho de cabeceira, ouve uma mensagem linda da emissora para o dia das mães e chora.
Ainda não eram nove da manhã, ela continua deitada, triste, angustiada.
De repente, uma dor forte no braço esquerdo, uma travada no queixo, uma dor aguda entra pelo peito. Ela tenta se levantar, não consegue.
Tenta apanhar o telefone da cabeceira, mas não alcança.
Uma dor muito forte interrompe seus movimentos. Ela ainda vê a imagem dos dois filhos no porta-retrato e apaga. Na mesma cama de tantos sonos tranqüilos, ela se despede da vida.
O enfarte foi fulminante e nada poderia ter sido feito.
Dois dias depois, por não atender ao telefone, o filho veio de Maringá certo de que alguma coisa havia acontecido. Com o chaveiro, abre a porta da casa, entra e vê a mãe deitada na cama, o braço esticado em direção ao telefone, a luz do abajour acesa, o quarto todo fechado por quem queria dormir sem a interferência da luz.
Chamam o IML, comunicam o médico do postinho, liga para a irmã, senta na cama, olha e chora.
Ali encerrava a história daquela senhora que havia passado o domingo, o dia dela, sozinha. Mas sem os filhos saberem, ao desligar os circuitos, ela encontrou-se com Deus e este, com sua sabedoria, abraçou-a e deu os parabéns para uma mãe exemplar, guerreira, honesta e leal.
Lá de cima, ela somente olhava para os filhos tristes, a casa vazia, mas arrumadinha, a Vila Hauer que a acolhera por tantos anos.
E no próximo dia das mães, eles levariam flores no túmulo do cemitério do Água Verde e acenderiam velas, dizendo que muito a amavam e que ela não poderia ter partido. Ela, do algo de seu amor pelos filhos, os perdoaria novamente e dirigiria orações para os dois, amor para os dois, carinho para os dois, como sempre ela fez.
A vida inteira.